Peça teatral no MAM gera polêmica

Peça teatral no MAM gera polêmica

Edição de outubro/2017 – pág. 24

Peça teatral no MAM gera polêmica

Samira Saoud, M.S – Terapeuta na clínica “Everyone’s Counseling Center”

Vivemos em um mundo onde o certo é errado, e o errado é certo. Se defendemos os princípios da ética, da moral e dos bons costumes, somos tachados de moralistas e puritanos. Ainda assim, reputo ter mais valor ser moralista e puritana e zelar pela instituição sagrada da família a me conformar ou copiar o modelo deste mundo.


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No dia em que comemoramos o Dia da Criança no Brasil, reflito sobre o que é ser criança no país do futebol. Estatísticas mostram que o Brasil é o pior país para se criar meninas em toda a América Latina. E não é difícil entender por quê. O país do carnaval; da mulata rebolando nua na TV; da amoral novela das oito; dos programas de auditório, com mulheres seminuas dançando em movimentos sensuais e provocantes; anestesiou as mentes e fez, da concupiscência da carne e dos olhos e da lascívia, a norma geral aceita pela maioria. Afinal, todo mundo quer ser considerado mente aberta, moderno, antenado e “pra frentex”.

Isso me faz lembrar meu professor, um português escritor muito culto e viajado. Padre Videira dizia que a massa é burra. Eu acrescentaria dizendo que a massa é cega, sem discernimento e sem entendimento. Minha reflexão vem a propósito da polêmica gerada em torno da peça teatral apresentada no Museu de Arte Moderna (MAM), que envolveu um homem nu sendo manipulado e apalpado por meninas menores.

O corpo humano desnudo em si não é o que mais choca nessa história, mas sim o fato do corpo de um homem estranho nu sendo tocado por meninas e com a aquiescência dos pais. Logo os pais que têm a obrigação moral e legal de proteger os seus filhos. Confesso que tenho assistido a vídeos on-line com animais zelando e protegendo sua cria, fazendo melhor trabalho do que esses pais.

O dicionário define criança como uma pessoa de pouco juízo, ingênua e pura. Logo, pressupõe-se que os adultos a quem Deus confiou as crianças devem ser seus protetores. Há quem diga até que é preciso uma aldeia inteira para se criar um filho, tamanha é essa responsabilidade. Por isso, causa-me espanto, e até repugnância, que parte  da sociedade brasileira se levante para defender como arte aquilo que a constituição federal reputa como crime. A lei Magna, em seu artigo 227, determina que “cabe à família o dever irrenunciável de educar, bem como o dever de convivência e respeito à dignidade dos filhos, devendo esta sempre primar pelo desenvolvimento saudável do menor”. O artigo 229, da mesma Constituição Federal, atribui aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos. Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina em seu artigo terceiro que “toda criança e adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa, a fim de lhes proporcionar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.

Taísa Maria Macena Lima* (1984, p. 31) lembra que “o dever de criação abrange as necessidades biopsíquicas do filho, tais como: os cuidados na enfermidade, a orientação moral, o apoio psicológico, as manifestações de afeto, o vestir, o alimentar, o acompanhar física e espiritualmente (…)”. A lei prevê penalidades para os pais infratores, que vão desde uma pena pecuniária em que o pai ou mãe paga indenização ao filho, e em casos extremos, até a perda do pátrio poder e perda da guarda do filho. Fica claro que os responsáveis pelas meninas infringiram a lei porque não primaram, dentre outras coisas, pela sua dignidade e moral. Vejamos o que se entende por  dignidade e moral. Dignidade é “qualidade que infunde respeito; consciência do próprio valor; honra, autoridade, nobreza”; enquanto moral, “conjunto de valores, de normas e de noções do que é certo e errado, proibido e permitido dentro de uma sociedade”.

Fico pensando o constrangimento que essas meninas devem passar ao ir à escola, e os comentários maldosos que devem ouvir de outras crianças e de adultos enquanto brincam como qualquer outra criança no play ou quando vão ao shopping. Será que estão em terapia para tentar reparar o dano? Será que alguém lúcido entendeu que houve um dano que precisa ser reparado de imediato? Escolho pensar que as pessoas que defendem a libertinagem ocorrida no MAM não sabem o que aquela experiência pode acarretar a vida daquelas meninas. Por isso, resolvi compartilhar um pouquinho da minha experiência aqui, nos EUA, trabalhando como psicóloga nos últimos seis anos, em escolas públicas e privadas; em consultório de psiquiatra, especializado em crianças e adolescentes; em clínica de metadona tratando dependentes de heroína; em domicílio tratando crianças, adolescentes e suas famílias; no fórum de justiça (Drug Court), com dependentes químicos; em prisão masculina; em programa residencial para veteranos de guerra com dependência química e outras doenças mentais; e em centro para reabilitação para mulheres (em centro para homens também) com dependência química.

Durante esses anos, tenho visto um denominador comum ao tratar pacientes viciados em álcool (a pior das drogas lícitas), drogas ilícitas (street drugs) e lícitas (prescritas por médicos). Praticamente todos sofreram um trauma e cerca de 80% sofreram abuso sexual. E por que estou falando de abuso sexual? Porque entendo que as meninas do MAM sofreram esse tipo de trauma e foram molestadas. Explico: em geral, temos a ideia errônea de que abuso sexual e emocional pressupõem violência. Mas isso não é verdade. Em geral, o abuso acontece de maneira sutil, como um segredo entre o adulto e a criança abusada. Não é incomum a criança confiar e ter afeto pelo abusador. É verdade que, na maioria das vezes, também a criança é chantageada e coagida a não contar sobre o abuso, pois é ameaçada. O abuso físico, a violência doméstica são fáceis de se observar: um olho roxo, um braço quebrado. Mas o sexual nem sempre…

O abuso sexual, mais precisamente a molestamento, deu-se pelo fato do contato sexual ter sido entre um adulto e crianças incapazes de consentir por causa da idade. Uma criança não tem maturidade intelectual para ponderar sobre a repercussão do seu ato e tomar uma decisão consciente e acertada. Alguém poderia refutar essa afirmação dizendo que não houve intenção de coito. Vamos pressupor que não houve a intenção. Então, por que o “ator” estava nu? Qual era o objetivo da performance? O que esperavam que o público imaginasse assistindo àquele ato abjeto e baixo? Houve ereção ou alguma excitação – por mínima que fosse – por parte do homem, da mulher ou das meninas?  Essas são questões a serem levantadas pelos advogados em juízo, caso seja feita justiça nesse caso.

Como disse, vou compartilhar aqui um pouco da minha experiência. Eu tenho visto, em primeira mão, o destino das meninas e meninos que sofreram abuso sexual. Grande parte deles passa a usar álcool e drogas para reprimir e sufocar a dor emocional. Em geral, quando chegam para se tratar, já são adultos com a vida marcada por uma sucessão de intermináveis tragédias, que acrescentam dor e deixam o fardo mais pesado a ser carregado. Em geral, eles não vêm espontaneamente buscar ajuda, mas porque o juiz ordenou que se internassem para tratamento em ambiente controlado ou seriam mandados para a prisão. Eles podem escolher, e em geral escolhem, o tratamento. Normalmente, as mulheres já perderam a guarda dos filhos, que são levados a um lar adotivo, para o Departamento de Crianças e Famílias (DCF) – Department of Children and Families. Ter os filhos de volta torna-se o incentivo para essas mulheres adquirirem sobriedade. Caso a criança não seja tratada após o trauma, estas são algumas das consequências:

  1. risco de se tornar pedófila. Nem sempre isso ocorre, mas há mais chances de ocorrer;
  2. problema de ira incontrolável (anger problem), marcado por agressividade e irritabilidade;
  3. transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) – Post Traumatic Stress Disorder –, em que a vítima é atormentada por pesadelos, “flashbacks” da situação traumática que viveu, ataques de pânico com tremores, sudorese etc.;
  4. outras doenças mentais como bipolaridade, depressão, paranoia;
  5. relacionamentos disfuncionais e envolvimento com parceiros e parceiras abusivos;
  6. prostituição e promiscuidade, por baixa autoestima ou para custear o vício;
  7. vício em sexo (sex addiction). Uma compulsão exagerada por sexo e pornografia que consomem a mente levando a prejuízos na área familiar, financeira, no trabalho e nos relacionamentos sociais;
  8. prisão. Muitos passam a cometer crimes para custear o vício já que não conseguem manter um trabalho;
  9. confusão quanto ao próprio gênero. É muito comum entre usuários de drogas e álcool, identificarem-se como lésbicas, gays ou bissexuais, principalmente se já cumpriram longa sentença em prisão e tiveram parceiros do mesmo sexo;
  10. saúde física debilitada: doenças venéreas, tuberculose, hepatite C, AIDS. O álcool e as drogas diminuem a capacidade de julgamento, levando ao compartilhamento de agulhas e outros comportamentos arriscados;
  11. perda da família, que corta laços após ser repetidamente espoliada, roubada, manipulada e enganada. Com a dependência química, vem também a mudança de personalidade, o que torna a pessoa mentirosa e sem crédito. Invariavelmente, o dependente prefere os amigos usuários e a droga à própria família (pai, mãe, mulher e filhos).

Mesmo diante de tantos desafios, há esperança, e embora já tenha ido a alguns funerais por overdose, também já participei de casamentos e centenas de formaturas de dependentes em recuperação. Meu desejo é que se você não crê que houve dano àquelas meninas no MAM, ao ler essas ponderações, reflita e chegue à sua própria conclusão. As crianças são o futuro da nação, e nós somos a aldeia responsável pela sua criação e proteção.

*LIMA, Taísa Maria Macena. Guarda e afeto: tipo sociológico em busca de um tipo jurídico. Controvérsias no sistema de filiação. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1984, p. 31.



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